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30/11/2024

Declaração polêmica do presidente do Carrefour expõe a urgência

De um padrão de bem-estar para os animais no Mercosul.

A recente controvérsia envolvendo o Carrefour França, que inicialmente decidiu suspender a compra de carne produzida nos países do Mercosul, revela um aspecto crítico e muitas vezes negligenciado: o abismo entre os padrões de bem-estar animal praticados na União Europeia e os adotados em nossa região. Embora o foco inicial da decisão do Carrefour tenha sido questões ambientais e de qualidade, o episódio trouxe à tona um debate mais amplo e urgente sobre a forma como tratamos os animais criados para consumo.

Apesar da pressão do setor agropecuário brasileiro, que levou ao recuo da rede varejista, a discussão expõe uma necessidade inadiável de mudança nos padrões de bem-estar animal nos países do Mercosul.

As negociações sobre o Tratado entre o Mercosul e a União Europeia começaram em 1999 e o documento foi assinado em 2019, mas o processo de ratificação foi suspenso por países europeus devido às preocupações de que uma vez que entrasse em vigor, poderia aumentar significativamente o desmatamento na Amazônia. Por causa disso, o Parlamento Europeu deliberou que a ratificação deveria ser precedida por um Protocolo Adicional, para corrigir as falhas do documento original.

Além das preocupações com o desmatamento na Amazônia, questões relacionadas ao bem-estar animal também estão em jogo na mesa de negociação do Tratado. A Áustria e a França são algumas das principais opositoras do texto original e defendem a reabertura das negociações para que os produtos de origem animal exportados do Mercosul à União Europeia atendam aos mesmos padrões de bem-estar animal que os produtores europeus têm que seguir na Europa. No dia 26 de novembro, a Assembleia Nacional da França rejeitou o acordo Mercosul-UE, pontuando problemas de bem-estar animal e ambientais ligados à carne brasileira.

Na guerra de narrativas, o Ministro do Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), Carlos Fávaro, afirma que a declaração do CEO do Carrefour, Alexandre Bompard, é uma estratégia orquestrada entre as empresas francesas para forçar o governo a não assinar o Protocolo Adicional que permitirá que o Tratado entre os dois blocos comerciais seja finalmente ratificado. Por trás dessa declaração encontra-se a incapacidade de reconhecer que para a Europa, o bem-estar animal importa. De acordo com a mais recente pesquisa sobre o tema realizada pelo Eurobarometer, “84% dos europeus acreditam que o bem-estar dos animais de criação deveria ser mais bem protegido em seus países do que é atualmente” e 93% dos cidadãos da UE querem que as importações respeitem os mesmos padrões de bem-estar animal que os aplicados na UE. No Brasil, de acordo com pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha, 88% dos consumidores se importam com as condições nas quais os animais são produzidos.

Se for ratificado, o Acordo de Livre Comércio entre o Mercosul e a União Europeia irá diminuir 82% das tarifas dos produtos agropecuários produzidos no Mercosul, porém todas carnes de alta qualidade que atualmente se enquadram na cota Hilton, ficarão isentos de tarifas de exportação para a Europa. Como consequência, não apenas o acordo irá aumentar o número de animais explorados para consumo humano nos países do Mercosul, produzindo consequências ainda mais severas para o meio ambiente, como também, a médio e longo prazo, forçar os produtores europeus a diminuírem os padrões de bem-estar animal que atualmente praticam.

Tentativas da sociedade civil organizada, incluindo a Animal Equality, de melhorar as leis e normas de proteção animal no Brasil são constantemente boicotadas no Congresso Nacional, e por isso não avançam. As leis de proteção animal nos demais países do Mercosul são ainda mais precárias, mostrando que o setor não é responsivo à evolução da sociedade. Enquanto insistem em afirmar que não há nada errado com o setor de produção de alimentos de proteína animal, deixam de fazer as reformas almejadas pela sociedade.

Enquanto aguardamos avanços nas negociações comerciais, não podemos subestimar o papel dos consumidores e da sociedade civil. Por isso a Animal Equality junto a outras 50 organizações do terceiro setor, atuam desde de 2022 para conscientizar o governo brasileiro e os líderes do Parlamento Europeu para que incluam cláusulas de proteção animal no Tratado entre o Mercosul e a União Europeia. Diante do possível crescimento exponencial das exportações de carne bovina, suína e de frango para a Europa, reivindicamos que o acordo possua cláusulas que nivele os padrões de bem-estar animal por alto, e não force os avanços europeus a retroceder. Enquanto o Ministro e representantes do setor alardeiam vitória por terem, por meio da intermediação da Embaixada Francesa, alcançado uma retratação formal do CEO do Carrefour e líderes europeus debatem se o Protocolo deve ou não ser assinado, os animais são a parte mais interessada, pois pagarão literalmente com a própria carne o preço destas negociações.

Por: Carla Lettieri, diretora executiva da Animal Equality Brasil.| Carla Lettieri é ativista vegana e Diretora Executiva da Animal Equality no Brasil, desde 2020. É Doutora em Sociologia e Direito pela UFF e Mestre em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio. Possui especialização em Resolução de Conflitos pela Universidade de Uppsala e certificação em Gestão de Mudanças pelo Human Change Management Institute. Com mais de 20 anos de experiência no setor sem fins lucrativos, liderou diversos programas e defendeu causas fundamentais. Em 2003, recebeu o Prêmio Ethos e foi destacada no livro Mulheres no Terceiro Setor, publicado com o Selo Mulheres da Editora Leader, que reconhece mulheres com contribuições significativas em suas áreas.| Animal Equality — A Animal Equality é uma organização internacional que trabalha com a sociedade, governos e empresas para acabar com a exploração de animais. Através de investigações, campanhas corporativas e educação pública, a Animal Equality atua para promover mudanças efetivas que beneficiem os animais. | https://animalequality.org.br