alexandre-fragoso

23/08/2024

Os dilemas dos trabalhos simultâneos – tecnologia e eficiência

O mercado de trabalho vem passando por grandes mudanças nos últimos anos, em especial após a pandemia de Covid-19 (com grandes impactos em 2020 e anos seguintes), que permitiu a prática do trabalho remoto de forma bastante ampla, estando os trabalhadores mais longe do olhar mais controlado do empregador, bem como com a adoção de tecnologias. A utilização de tecnologias já se aplica aos contratos de trabalho, produzindo grande efeito, há mais tempo, mas, seguramente, novas mudanças refletirão nos contratos de trabalho ao longo dos próximos anos.

A despeito das alterações ocorridas, os principais requisitos do reconhecimento do vínculo de emprego, nos moldes da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), continuam sendo habitualidade, onerosidade, pessoalidade e subordinação, sendo que, ausente qualquer destes requisitos, o vínculo de emprego não deve ser declarado. Notem, então, que a exclusividade não é uma característica do vínculo de emprego.

Diante da possibilidade de múltiplos vínculos de trabalho, cujo emprego é apenas uma de suas espécies, quais seriam, ainda que por exemplo, alguns limitadores?

A jornada seria uma delas. Neste sentido, vejamos a Súmula 129 do TST que dispõe o seguinte: “Contrato fe Trabalho. Grupo Econômico. A prestação de serviços a mais de uma empresa do mesmo grupo econômico, durante a mesma jornada de trabalho, não caracteriza a coexistência de mais de um contrato de trabalho, salvo ajuste em contrário.”

Ou seja, se um trabalhador presta serviços para mais de uma empresa, dentro do mesmo grupo e durante a mesma jornada, não haveria mais de um contrato de trabalho, salvo se as partes ajustarem de forma contrária.

Há na jurisprudência outras decisões que afastam o vínculo de emprego quando há prestação de serviços de forma simultânea e para concorrentes, vejam, por exemplo:

“Vínculo de Emprego. Motorista de Aplicativo. Cadastro Simultâneo em Plataformas Concorrentes. O reconhecimento da existência de vínculo de emprego entre motorista e empresa proprietária de aplicativo de transporte é obstado pela ausência do requisito da subordinação jurídica, consubstanciada na autonomia do trabalhador em decidir como, quando ou se deseja trabalhar, e também no cadastro simultâneo do motorista em plataformas concorrentes. Malgrado não seja a exclusividade um dos requisitos do vínculo empregatício, a prestação simultânea de serviços a empresas concorrentes é incompatível com a natureza do contrato de trabalho, tendo em conta o quanto disposto no artigo 482, c, da CLT.” TRT-4 – Recurso Ordinario Trabalhista: ROT 208852520215040014, Data de publicação: 20/04/2023.

Uma vertente que a jurisprudência vem trazendo nos últimos anos é a subordinação algorítmica, a qual pode ser mais bem compreendida na decisão abaixo e não está sozinha: “Recurso Ordinário. Motorista (Uber). Vínculo de Emprego. Subordinação Algorítmica. Existência. O contrato de trabalho pode estar presente mesmo quando as partes dele não tratarem ou quando aparentar cuidar-se de outra modalidade contratual. O que importa, para o ordenamento jurídico trabalhista, é o fato e não a forma com que o revestem – princípio da primazia da realidade sobre a forma. No caso da subordinação jurídica, é certo se tratar do coração do contrato de trabalho, elemento fático sem o qual o vínculo de emprego não sobrevive, trazendo consigo acompanhar a construção e evolução da sociedade. A Lei, acompanhando a evolução tecnológica, expandiu o conceito de subordinação clássica ao dispor que “os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio” (parágrafo único do artigo 6º da CLT). No caso em análise, resta claro nos autos que o que a Uber faz é codificar o comportamento dos motoristas, por meio da programação do seu algoritmo, no qual insere suas estratégias de gestão, sendo que referida programação fica armazenada em seu código-fonte. Em outros termos, realiza, portanto, controle, fiscalização e comando por programação neo-fordista. Dessa maneira, observadas as peculiaridades do caso em análise, evidenciando que a prestação de serviços se operou com pessoalidade, não eventualidade, onerosidade e sob subordinação, impõe-se a manutenção do reconhecimento do vínculo de emprego.” TRT-1 – Recurso Ordinário Trabalhista 1000477120235010050, Data de publicação: 10/07/2024.

Esta modalidade de subordinação, já bastante discutida pela doutrina e jurisprudência, está intimamente vinculada aos aplicativos de mobilidade urbana, entre eles, por exemplo, 99 Táxi, Uber, e o prof. Rodrigo de Lacerda Carelli apoiado na obra de Alain Supiot (SUPIOT, Alain. La gouvernance par lesnombres.), explica que “No novo regime, a organização do trabalho – e consequentemente o seu controle – apresenta-se de forma diferente: é a programação por comandos. Restitui-se ao trabalhador certa esfera de autonomia na realização da prestação. (Ob. Cit, p. 354.) Esta é a direção por objetivos. A partir da programação, da estipulação de regras e comandos preordenados e mutáveis pelo seu programador, ao trabalhador é incumbida a capacidade de reagir em tempo real aos sinais que lhe são emitidos para realizar os objetivos assinalados pelo programa. (Ob. Cit., p. 355.) Os trabalhadores, nesse novo modelo, devem estar mobilizados e disponíveis à realização dos objetivos que lhe são consignados. (…) Neste ponto encontramos uma contradição própria do novo modelo: ao mesmo tempo em que acena para a entrega de parcela de autonomia ao trabalhador, essa liberdade é impedida pela programação, pela só e mera existência do algoritmo.”, in Carelli, Rodrigo de Lacerda. O caso Uber e o controle por programação: de carona para o Século XIX In: Tecnologias Disruptivas e a exploração do trabalho humano. Ana Carolina Paes Leme, Bruno Alves Rodrigues e José Eduardo de Resende Chaves Junior. São Paulo, LTR).

Ou seja, as formas de subordinação assumem, ao longo da história, características diferentes, mas sempre relevantes quando se trata da relação entre empregados e empregadores.

É oportuno destacar que a questão do reconhecimento do vínculo de emprego com as plataformas digitais não é objeto do presente conteúdo, de forma que não nos estenderemos neste tema, mesmo porque o processo legislativo sobre este assunto está em franca evolução, vide, por exemplo, o Projeto de Lei Complementar 12/24.

Apresentadas estas informações preliminares, fazemos o seguinte questionamento: Um empregado que presta seus serviços para uma empresa no setor de, por exemplo, compras, comercial, vendedores, manutenção, que costuma se deslocar da empresa para seus clientes ou tomadores de serviços constantemente ao longo da jornada, para cumprir as obrigações assumidas com seu empregador, pode, simultaneamente, durante a jornada de trabalho e em seu trajeto, ou parte dele, prestar serviços vinculado a um aplicativo de mobilidade urbana, como Uber, 99 Táxi, entre outros?

Este questionamento se refere àquele empregado que realiza suas atividades externamente, com ou sem controle de jornada. Fato é: este trabalhador, ao longo da sua jornada de trabalho, tem que se deslocar várias vezes de um ponto para outro, indo de sua residência/empresa para clientes ou locais onde prestará seus serviços, realizando habitualmente novos deslocamentos durante o dia de trabalho. Poderia, então, este trabalhador, entre um cliente e outro, entre um ponto de execução do trabalho e outro, estando previamente cadastrado a uma empresa destas de mobilidade urbana, ligar o aplicativo e, assim, conduzir os consumidores destes serviços do ponto “a” para o ponto “b”, ainda que próximos dos destinos pretendidos pelo empregador e decorrentes da rotina de trabalho habitual deste empregado?

Em princípio, se não proibido pelo contrato de trabalho, ou algum outro regramento existente entre a empregadora e o empregado, poderia.

Nesta esteira, ocorre que alguns pontos devem ser bem observados. Há algum prejuízo ou dano ao empregador? Se sim, o empregador pode, inclusive, avaliar a aplicação de uma medida disciplinar contra o trabalhador, a qual pode chegar à resolução do contrato de trabalho.

É oportuno deixar claro que o contrato de trabalho traz para as partes direitos e deveres, entre eles: ao empregador, pagar o salário, dar as condições de trabalho, conferir um meio ambiente saudável, seguro, entre outros; já ao trabalhador, de entregar aquilo que se propôs, de executar as atribuições que foram combinadas com fidelidade, obediência, disciplina, ética, comprometimento, lealdade.

À vista disso, caso o empregado deixe de cumprir seus deveres com o empregador, como, por exemplo, diminuir a produtividade, a quantidade de visitas que precisaria ou estava acostumado a fazer, a vender menos do que estava acostumado a realizar, seja em relação à sua produtividade ou de seus pares, poderá o empregador decidir pela extinção do contrato de trabalho.

Destacamos que o empregado deve agir de maneira íntegra, leal, comprometida com o empregador e, neste sentido, entregar o máximo que estiver ao seu alcance.

Por certo, se os colegas de trabalho têm uma produção ao redor de dez unidades diárias e o empregado que está dividindo as atenções entre o emprego e a atividade paralela não produz nada, ou está muito aquém dos demais, poderá ser entendido que está havendo prejuízo ao empregador e, desta forma, dependendo das provas colhidas, ser aplicada uma medida disciplinar contra o empregado faltoso, mais do que simplesmente resultar na rescisão do contrato de trabalho sem justa causa.

É certo que os empregadores conseguem, fazendo uso de tecnologias como de geolocalização, por exemplo, saber o trajeto que o empregado está realizando durante a jornada de trabalho e, com isso, subsidiar eventualmente a aplicação de uma medida disciplinar mais severa, como a resolução do contrato de trabalho – demissão por justa causa – em razão de descumprimento dos deveres do empregado.

Claro, quando tratamos de adotar alguma medida que toque no direito à privacidade do trabalhador, é necessária a adoção de algumas cautelas. A privacidade é um princípio fundamental protegido pela Constituição Federal. Desta forma, o acompanhamento da localização dos trabalhadores deve ser realizado de forma adequada, obtendo-se o consentimento dos trabalhadores, dentro da jornada de trabalho. É recomendável que os empregados conheçam os propósitos do monitoramento e as informações ou dados devem ser bem utilizados, protegidos, nos termos da lei.

Sendo assim, através do uso de ferramentas de geolocalização, o empregador facilmente poderá constatar eventuais desvios de rotas e, assim, se preparar para melhor aplicar uma medida mais drástica como a demissão por justa causa.

Por outro lado, se o trabalhador que está, durante o trajeto, realizando “corridas” através de aplicativos e, mesmo assim, mantém sua eficiência perante o empregador, realizando suas atribuições a contento, cumprindo seus objetivos, metas, não causando nenhum tido de prejuízo ou dano ao empregador, não está desrespeitando nenhuma regra do empregador, poderia manter os dois trabalhos, o celetista e aquele através do aplicativo de mobilidade, simultaneamente.

Por: Alexandre Fragoso Silvestre, Mestre em Direito do Trabalho e sócio do Briganti Advogados.