As competências tributárias podem ser objeto de emenda constitucional, conforme já apontado por Paulo de Barros Carvalho [1], para quem a alterabilidade é ínsita ao quadro das prerrogativas de reforma do poder Constituinte, e por Roque Antonio Carrazza [2], que leciona que eventual emenda que venha a redefinir as competências tributárias é possível, mas exige um cuidado especial do legislador para que não desrespeite, especialmente, a autonomia financeira dos entes federados.
Isso porque, com base numa Constituição rígida, é possível estabelecer princípios e normas constitucionais que não poderão ser modificados (cláusulas pétreas), ou quando podem, devem observar um processo legislativo mais dificultoso ao comparado ao de edição das demais normas infraconstitucionais.
A Constituição rígida é responsável por assegurar a união entre os entes federativos e prescrever a impossibilidade de haver secessão entre eles.
A simples transferência de recursos arrecadados para os Estados não garante a autoadministração dos entes periféricos, pois o exercício da competência material conferida aos estados pela União depende de outros fatores.
A autonomia dos entes federativos exige que os membros tenham competência tributária própria, não bastante a posição de destinatário da arrecadação. O que vale dizer, faz-se necessária a garantia de certas competências tributarias próprias para que possam cumprir com suas obrigações constitucionais sem depender do ente central.
Além do mais, se considerarmos que os poderes convergem para um centralismo, o ente central deve financiar, de certa forma, os entes periféricos, pelo princípio da cooperação mútua, segundo as regras de competência tributária.
Heleno Taveira Torres [3] ensina que: “Com o federalismo cooperativo equilibrado da Constituição de 1988, caminha-se para uma melhor estabilidade nas relações entre suas unidades, com vistas a implantar uma cooperação efetiva, redução de desigualdades e desenvolvimento sustentável, mas ainda há muitos entraves a serem superados, mormente quanto ao financiamento estatal. Basta ver as repercussões negativas da fiscal ou os modelos desatualizados dos critérios que animam a distribuição dos fundos de participação dos Estados e Municípios”.
Vale a pena relembrar que é vedado por nosso ordenamento jurídico qualquer proposta de emenda constitucional que pretenda suprimir ou modificar o pacto federativo.
Assim, não poderão advir leis ou normas que por qualquer ação, possam anular ou restringir o princípio federativo.
Os estados membros, numa federação, são dotados de autonomia legislativa e constitucional, independentemente de seu tamanho ou do número de sua população.
Pensar numa reforma tributária sob o ponto de vista do federalismo fiscal, nos traz à lembrança de que devemos conciliar a austeridade fiscal, a responsabilidade social, a eficiência microeconômica e o respeito ao equilíbrio federativo e descentralização fiscal.
A proposta aprovada no último dia 6/7/2023 junto a Câmara dos Deputados por 375 votos favoráveis e 113 contrários trouxe diversas modificações ao sistema tributário, propondo acabar com os seguintes tributos: ICMS, ISS, PIS, Cofins e IPI e criou mais quatro tributos IBS, CBS, Imposto Seletivo e Contribuições dos Estados.
Resumindo de forma mais objetiva, teremos a reunião do PIS e da Cofins com o título de CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços), cobrada pela União. Já o ICMS se unirá ao ISS e formarão o novo tributo, denominado IBS (Imposto sobre Bens e Serviços), a ser cobrado pelos estados e municípios, desde que sejam deliberados pelo Conselho Federativo. Já, o IPI será transformado no IS (Imposto Seletivo), com funções assemelhadas à já existentes e, por fim, restou criado uma contribuição sobre produtos semielaborados para investimento em obras de infraestrutura e habitação, que poderá ser instituída até 31 de dezembro de 2023 e ampliará fortemente o poder de tributar dos estados, que inclusive poderão voltar a cobrar sobre as exportações.
Ao nosso ver, é de se pontuar a inaplicabilidade do projeto, que pretende efetivar uma “reforma simplificada”, com um prazo de transição de 50 anos, prev isto no ADCT e alguns outros prazos de implementação de dois a dez anos.
Assim, de acordo com o novo projeto, ao prever regras de transição extremamente longas, fará com que o contribuinte se depare com a seguinte situação: cobrança dos tributos atuais juntamente com aqueles relativos à nova sistemática prevista na reforma, em ofensa, assim, ao princípio da subsidiariedade.
Conhecendo nosso sistema político nacional, inclusive, os Poderes Legislativo e Executivo, sinceramente, não vemos nenhuma chance de que tal projeto venha mesmo implantar uma simplificação em nosso sistema tributário nacional, em vigor há 35 anos, com suas imperfeições, claro, como, por exemplo a guerra fiscal, mas sem dúvida alguma, é um instrumento de grande sintonia de implementação.
Segundo o projeto, haverá a criação de novas regras de competência tributária para a União e se excluiu algumas competências dos demais entes federativos.
Dessa forma, referido projeto de instituição do IBS é contrário ao pacto federativo, pois estados e municípios ficarão adstritos à União, que definirá as alíquotas, a seu bel prazer, por meio de seu Comitê Gestor, que será criado por lei de cunho nacional.
Ademais, referida emenda trata de mudanças no Estado federal e altera os critérios de repartição de competências entres os entes federativos, que é um dos pilares do pacto federativo, como, por exemplo, as relações entre o ente central (União) e os entes periféricos (estados, DF e municípios), quando existe norma expressa, proibindo qualquer tipo de emenda constitucional que vise afastar o pacto federativo.
Nesse sentido, Geraldo Ataliba [4] já alertava: Enquanto a Federação for princípio fundamental e básico de toda nossa ordenação jurídica, não pode haver interpretação que atribua à nossa legislação, e ao comportamento das pessoas públicas, disciplina própria de estado unitário. Ainda que se afirme — de modo duvidosamente procedente — que caminhamos no sentido do estado unitário, este ainda não foi estabelecido, por falta de verdadeiro e legítimo movimento revolucionário, que o restaure. Enquanto isto não acontecer, a ninguém é dado ignorar a exigências do princípio federal; nenhum órgão tem o poder de anular as peremptórias exigências básicas. E se o fizer, estará praticando a mais grave e repugnante transgressão ao que de mais sagrado funda a nossas instituições. Por isso, merecerá enérgica repulsa da Suprema Corte, órgão constitucional cuja precípua e mais nobre atribuição está em assegurar a supremacia do Pacto Federal.
Um segundo ponto crítico, a nosso ver, o mais preocupante, é no tocante à autonomia dos entes federativos. Ora, se o ente federativo não tiver poder para instituir tributos e nem autonomia para gerir suas receitas, provenientes de arrecadação, não podemos falar que resta preenchido um dos alicerces da federação, que é a autonomia dos entes federativos.
Ademais, proibir qualquer concessão de benefício fiscal retira a autonomia dos entes federados, reduzindo a sua autonomia fiscal, configurando-se, assim, verdadeiro atentado ao federalismo.
Assim, a nosso ver, a PEC 45, cria uma supressão das competências tributárias dos estados e dos municípios — vez que extingue o ICMS e o ISS — ao criar a competência tributária nacional para instituir o IBS, violando, portanto, o pacto federativo.
Nesse sentido, destacamos as lições de Tácio Lacerda Gama [5]: O atributo da inalterabilidade das competências já foi, inclusive, objeto da ADI 939-DF, que reconheceu a impossibilidade de mediante emenda inserir alterações que revoguem os direitos e garantias individuais. Como proclamou o voto do ministro Sepúlveda Pertence, os direitos e garantias individuais espalham-se por todo o texto da Constituição, indo muito além dos previstos no artigo 5º da Carta. Daí afirmar-se, com razão, existirem direitos e garantias individuais relativos ao sistema constitucional tributário em vários casos pode-se, mesmo, identificar a vinculação direta entre direitos previstos genericamente no artigo 5º e outros relativos à tributação.
Muito embora tal entendimento, o Supremo Tribunal Federal, nos autos do RE 573.675/SC [6], considerou que a competência tributária pode ser alterada, ao julgar pela referida constitucionalidade da atribuição de competência da contribuição para o custeio do serviço de iluminação pública (Cosip) aos municípios e ao DF, sob o fundamento de que nada muda, cumpre salientar, ainda que, até a presente data, o STF não exerceu nenhum controle de constitucionalidade acerca de qualquer instrumento que revogue competências tributárias.
Isso porque, ainda que se entenda, que não deve prosperar a tese de inalterabilidade da competência tributária, tal afirmação e a decisão acima em nada alteram nosso posicionamento, pois o problema se desnuda quando verificamos se pode ou não seria tolhido ou minorado o exercício da competência tributária de um ente político.
Nesse caso, os limites do §4º do artigo 60 da CF/88 devem ser seguidos em sua integralidade, não sendo admitida qualquer forma de retirada da autonomia financeira de um ente político, diminuindo-lhe as receitas decorrentes dos tributos de sua competência, responsáveis por fazer face a maioria de suas despesas.
Em outras palavras, não pode uma emenda constitucional tolher ou minorar competência de entes políticos que gozam de autonomia financeira própria da prestigiada no pacto federativo constitucional, que, diga-se de passagem, privilegiou, no campo tributário, a União em detrimento dos outros entes políticos. Basta perceber o volume de recursos dos impostos federais e receitas das contribuições sociais e interventivas.
Daí é possível indagar se pode uma emenda constitucional tolher ou minorar a competência tributária dos estados quanto ao ICMS? Obviamente não, já que tal tributo é a principal fonte de receita dos estados. pode tolher ou diminuir a competência tributária dos municípios em instituir o ISS? Também não [7].
Não se pode, ainda que por via transversa, afetar tais receitas para outro ente ou órgão que não seja o reservado constitucionalmente como competente para instituir o tributo. Pelos mesmos motivos, não se pode retirar a autonomia gerencial dessas receitas dos entes políticos competentes. Tais condutas encontram óbice no núcleo constitucional duro do princípio do pacto federativo [8].
Outro ponto delicado se refere ao Imposto Seletivo (IS), no qual se instituiria um imposto seletivo, com finalidade extrafiscal, cuja destinação será desestimular o consumo de determinados bens e serviços. De observar a manifesta insegurança jurídica, sem qualquer definição de sua hipótese de incidência e partilha da arrecadação com os demais entes políticos.
Ainda há que se pontuar que, no tocante à tributação sobre consumo, entendemos que não é possível uma alíquota única, pois teríamos vários contribuintes sendo tributados na mesma base e intensidade, o que viola o princípio da capacidade tributária, além do impacto na desigualdade social e regional.
Ademais, a manifestação estrutural ao sistema do imposto único como querem alguns, não existe nem no projeto aprovado pela Câmara, vez que a nosso ver, o imposto único se caracteriza por envolver todas as etapas de produção, industrialização e comercialização sem onerar o contribuinte. Todo o ônus de tal operação recai sobre o consumidor final, pois sua essência e a generalidade e a neutralidade.
Cabe, ainda, destacar a prematura extinção dos incentivos fiscais, que, muitas vezes, tem por escopo combater as diversas desigualdades sociais e reginais existentes em nosso país. Nesse sentido, as regiões Norte e Nordeste serão afetadas, o que também afeta o interesse público primário, consubstanciado nos objetivos da República brasileira. Esses objetivos não podem ser violados em sua extensão, forma e materialidade pelo Executivo, em prol de interesses secundários, incompatíveis com aquele interesse primário — como é o caso do incremento da receita.
Nesse contexto, vale a pena lembrar três desafios para se buscar uma reforma, que objetive a consecução de um novo federalismo fiscal: o do equilíbrio, da eficiência e o da responsabilidade, dentro do nosso rígido sistema constitucional tributário.
Os contribuintes brasileiros não suportam mais a alta carga tributária existente atualmente. Ao mesmo tempo, as propostas de reforma tributária existentes, implicam, necessariamente, em alterações de competências e partilhas entre os entes federativos, o que implica, necessariamente, em violação à cláusula pétrea do pacto federativo existente em nosso ordenamento jurídico.
Com maestria, Roque Antonio Carrazza [9] menciona que: “Tão marcante é o princípio federativo, que lei alguma, nenhum poder, nenhuma autoridade, poderá, direta ou indiretamente, às claras ou de modo sub-reptício, derroga-lo ou, de algum modo, amesquinhá-lo. É cláusula pétrea,e, destarte, irremovível até por emenda constitucional, como ressai da só leitura do artigo 60, §4º, I, da CF.”
Ao mesmo tempo, os entes federativos não querem abrir mão da parte arrecadatória que lhes cabe, pois sempre alguns serão beneficiados e outros prejudicados, dada a complexidade do sistema constitucional tributário existente. Como bem ensina Fernando Rezende [10]:
Necessita-se, primeiramente, de um melhor equilíbrio entre receitas próprias e transferências, acompanhado da recomposição de instrumentos tributários capazes de impulsionar os investimentos indispensáveis ao desenvolvimento das regiões mais atrasadas. Tal reequilíbrio de fontes orçamentárias, diga-se, não é apenas uma exigência no avanço da descentralização das responsabilidades públicas na Federação brasileira, mas, também, um requisito indispensável à maior eficiência do gasto. A desvinculação da decisão de gastar, que representa um bônus político, da decisão de instituir o tributo necessário ao financiamento do gasto, que traz um bônus político, propicia um ambiente favorável ao descontrole e ao desperdício. A eficiência na utilização dos recursos públicos requer um controle permanente da sociedade sobre o Estado. A disposição de exercer esse controle depende de o cidadão ter uma clara percepção para onde está indo o dinheiro que ele compulsoriamente é forçado a transferir sob a forma de tributos. Enfim, os desafios da eficiência, da responsabilidade e do equilíbrio são totalmente imbricados.
Na verdade, entendemos que não é o sistema que está errado, muito pelo contrário. Ao invés de se buscar extinguir tributos e competências tributárias tão bem norteadas pelo legislador constituinte, criando com isso novos tributos e alíquotas e dificultando ainda mais a vida do contribuinte, o melhor seria buscar uma melhor implementação de políticas públicas de administração tributária.
Ademais, cumpre lembrar que os dois projetos não vieram acompanhados de estudos detalhados acerca de sua repercussão nos diversos setores econômicos e de seus impactos na economia do País, implantando um sistema de criação e imposto único, que efetivamente não funcionara em nosso sistema federativo brasileiro.
[1] Curso de direito tributário. p. 275; [2] Curso de direito constitucional tributário. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2019, p. 56; [3] Federalismo em juízo, p. 315; [4] Competencia Legislativa Supletiva Estadual, p. 510-511; [5] Gama. Tácio Lacerda. Estudos de Direito Tributário em homenagem ao Professor Roque Antonio Carrazza. Vol. 1, São Paulo: Malheiros, 2014, p. 420; [6] Brasil. STF, 573.675/SC, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ 22/05/2009; [7] De forma contrária, Renato Lopes Becho, entretanto, entende que é plenamente discutível a possibilidade de alteração da competência, mesmo por emenda constitucional. (Lições de Direito Tributário, São Paulo, Saraiva, 2018; [8] Como bem ensina Heleno Taveira Torres: “o pacto federativo não pode ser compreendido como uma propensão individualista ou egoísta, na defesa das autonomias ou de uma busca desenfreada por mais recursos, mas como um modo de efetividade da vontade constitucional da unidade e de ampliação do papel da democracia na sociedade. Quanto maior a ampliação da participação popular nos destinos das unidades descentralizadas, maior o controle sobre o patrimônio público e as conquistas com melhoria da qualidade de vida das pessoas. Este é o verdadeiro papel do federalismo”. (ob citada, p. 119); [9] ICMS, p. 67; [10] Rezende, Fernando. Federalismo Fiscal no Brasil. Revista de Economia Política. Rio de Janeiro, vol. 15, n°3, p. 5-17, jul/set, 1995, p.12/14.
. Por: Rogério Vidal Gandra da Silva Martins é advogado e especialista em Direito Tributário pelo CEU-Law School e, Roberta de Amorim Dutra é formada pela Unip (Universidade Paulista, pós-graduada em Direito Tributário pelo CEU (Centro de Extensão Universitária), sob a coordenação do professor Ives Gandra da Silva Martins, e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo).