O desastre no Rio Grande do Sul resultou em graves e diversos prejuízos à população local, incluindo danos materiais e, sobretudo, impactos significativos à saúde dos moradores e voluntários que foram afetados nos últimos dias. Esta situação trouxe à tona a questão da responsabilidade dos planos de saúde na cobertura dos tratamentos necessários aos segurados afetados. A complexidade do caso reside na interpretação das cláusulas contratuais dos planos de saúde em relação a desastres naturais e na análise da legislação aplicável à matéria, em especial as normas estabelecidas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e o Código de Defesa do Consumidor (CDC).
A controvérsia central gira em torno da negativa de cobertura por parte de alguns planos de saúde, sob a alegação de que os tratamentos requisitados não se encontrariam previstos nos contratos ou que se enquadrariam em exclusões contratuais relativas a desastres naturais. Tal postura das seguradoras levou a um aumento significativo no número de litígios, com segurados buscando na justiça o direito à cobertura dos tratamentos de que necessitam em razão do desastre.
É fundamental destacar que a relação entre segurados e seguradoras é regida pelo princípio da boa-fé objetiva, que impõe às partes o dever de agir com honestidade, lealdade e probidade, evitando comportamentos que possam resultar em desequilíbrio contratual ou na imposição de desvantagens indevidas a uma das partes. Nesse sentido, a análise da conduta das seguradoras no contexto do desastre no Rio Grande do Sul requer uma avaliação cuidadosa da adequação das suas práticas aos princípios do CDC e às normas da ANS.
Outro ponto de relevância é a interpretação das cláusulas contratuais à luz do Código de Defesa do Consumidor, que estabelece como nulas de pleno direito as cláusulas consideradas abusivas ou que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada. Assim, a negativa de cobertura baseada em cláusulas que possam ser interpretadas como abusivas pode ser questionada judicialmente, sendo possível a intervenção do Poder Judiciário para garantir o equilíbrio contratual e a proteção dos direitos dos consumidores.
A situação exige uma análise detalhada da legislação pertinente, das cláusulas contratuais específicas e dos princípios gerais do direito aplicáveis ao caso, a fim de se determinar a extensão da responsabilidade dos planos de saúde na cobertura dos tratamentos necessários em decorrência do desastre. A complexidade e a relevância social desta questão jurídica justificam a elaboração do presente artigo, que visa esclarecer os aspectos legais envolvidos e orientar adequadamente a parte interessada quanto aos seus direitos e às possíveis vias de solução para o conflito.
No caso em tela, estamos diante de uma situação que envolve a negativa de cobertura por parte de uma operadora de plano de saúde a tratamentos necessários em decorrência de um desastre ocorrido no Rio Grande do Sul. A análise jurídica deve se pautar, inicialmente, na legislação aplicável aos planos de saúde, notadamente a Lei nº 9.656/98, que regula os planos e seguros privados de assistência à saúde no Brasil, e no Código de Defesa do Consumidor (CDC), Lei nº 8.078/90, tendo em vista a relação de consumo estabelecida entre a operadora do plano e seus beneficiários.
A Lei nº 9.656/98, em seu artigo 10, estabelece as exclusões de cobertura permitidas aos planos de saúde. No entanto, é preciso analisar se, no contexto de um desastre, tais exclusões se aplicam, especialmente considerando que o artigo 35-C da mesma lei determina a obrigatoriedade da cobertura do atendimento nos casos de emergência, definidos como aqueles que implicam risco imediato de vida ou de lesões irreparáveis para o paciente.
Por outro lado, o CDC, aplicável à relação entre consumidor e fornecedor de serviços de saúde suplementar, estabelece princípios importantes que podem ser invocados na defesa dos direitos dos consumidores afetados. O artigo 6º, inciso V, assegura o direito à modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.
Ademais, a interpretação das cláusulas contratuais deve seguir o princípio da boa-fé objetiva e da função social do contrato, conforme estabelecido nos artigos 421 e 422 do Código Civil. Isso implica que, mesmo que haja cláusulas que, à primeira vista, excluam a cobertura para tratamentos decorrentes de desastres, a sua interpretação deve considerar o contexto extraordinário e a necessidade de garantir os direitos fundamentais à saúde e à vida, previstos na Constituição Federal de 1988, artigos 6º e 196.
Além disso, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), órgão regulador do setor, desempenha papel crucial na fiscalização e na regulamentação das operadoras de planos de saúde. A Resolução Normativa nº 395/2016 da ANS, por exemplo, estabelece os prazos máximos para atendimento pelos planos de saúde, que devem ser observados mesmo em situações de aumento de demanda decorrente de calamidades.
Deve-se também avaliar a possibilidade de acionar a ANS, seja através de reclamações administrativas, seja por meio da solicitação de intervenção para garantir a cobertura dos tratamentos necessários aos afetados pelo desastre. Paralelamente, ações judiciais podem ser propostas, visando à obtenção de liminares que assegurem o atendimento emergencial e o tratamento subsequente, com base na legislação aplicável e na jurisprudência pertinente.
Portanto, é fundamental a compreensão detalhada dos direitos dos consumidores, especialmente no que tange à cobertura de tratamentos necessários em decorrência de desastres, sob a ótica da legislação brasileira aplicável a planos de saúde e à proteção do consumidor.
. Por: Natália Soriani, especialista em Direito da Saúde e sócia do escritório Natália Soriani Advocacia.