No início de 2023, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) proibiu a comercialização e o uso de todas as pomadas capilares no Brasil. Essa decisão teve um impacto significativo na indústria de produtos cosméticos e gerou debates sobre a segurança e regulamentação das pomadas, suscitando até mesmo polêmicas de racismo estrutural.
A decisão de proibir as pomadas capilares foi fundamentada em uma série de preocupações críticas relacionadas à saúde pública. Em dezembro de 2022 e janeiro de 2023, a agência emitiu dois alertas que indicaram eventos adversos graves, possivelmente associados ao uso de pomadas capilares: cegueira temporária (perda temporária de visão), forte ardência nos olhos, lacrimejamento intenso, coceira, vermelhidão, inchaço ocular e dor de cabeça. As pomadas, concebidas para fixar cabelos, são produtos sem enxague, frequentemente, usadas por trancistas para modelar e fixar cabelos em penteados étnicos.
Segundo a Anvisa, os dados da investigação no Rio de Janeiro mostravam que, até o dia 7 de fevereiro, já havia mais de 3 mil atendimentos oftalmológicos registrados em um único hospital de emergência da capital carioca, com 685 casos confirmados de intoxicação exógena (causada por fatores externos, ou seja, que têm origem fora do organismo) temporalmente relacionados à utilização de cosméticos para modelar/trançar cabelos.
Esses eventos adversos levantaram sérias preocupações sobre a segurança desses produtos, e motivaram a agência a tomar medidas imediatas e drásticas para proteger os consumidores. A princípio, algumas marcas diretamente envolvidas tiveram sua comercialização proibida e ordem de recolhimento (recall) expedida. Em seguida, numa medida mais extrema, a Anvisa interditou cautelarmente todos os produtos do tipo, proibindo seu comércio e sua utilização (RE 475, em fevereiro de 2023), o que representava um total de 3.154 marcas.
Em 17 de fevereiro, a Anvisa realizou uma reunião técnica com fabricantes de pomadas capilares, onde algumas empresas alegaram que os eventos adversos estavam associados ao uso para trançar cabelos e a supostas práticas de não lavar os cabelos trançados por vários dias. Essas afirmações suscitaram preocupações sobre possíveis elementos discriminatórios e racistas na procura por responsáveis.
Na ocasião, a Anvisa enfatizou seu repúdio a qualquer forma de discriminação, especialmente o racismo, e destacou que não existem dados até o momento que indicassem uma causa específica para os eventos adversos, não havendo alegações técnicas de que os problemas fossem relacionados a pessoas negras ou à prática de trançar cabelos.
Como o fato ocorreu perto do Carnaval, época em que o uso de penteados tende a aumentar, a Anvisa emitiu proibição geral para evitar novos surtos de intoxicação ocular.
A partir de março, a agência passou a organizar listas dinâmicas de pomadas que poderiam voltar a ser comercializadas. Em junho, considerando que medidas cautelares restritivas tem duração máxima de 90 dias – por força da Lei 6437/77 – a Anvisa renovou a interdição cautelar, para manter a proibição das pomadas, exceto aquelas já autorizadas na lista positiva.
Finalmente, em setembro de 2023, a agência colocou fim a interdição cautelar, e divulgou a RDC 814/2023, estabelecendo condições temporárias para a regularização, comercialização e uso de pomadas capilares, marcando uma nova etapa regulatória em resposta à crise sanitária relacionada a esses produtos.
A norma determina que novos produtos deverão obrigatoriamente passar pelo processo de registro sanitário (e não simples notificação) e que os produtos já notificados, entre março e setembro, deverão ser readequados pelas empresas até 31/12/2024, para permanecerem na lista de autorizados.
Além disso, foram definidos requisitos técnicos que visam garantir a segurança das formulações: a concentração de álcoois etoxilados deve ser inferior a 20%. O Ceteareth 20, agente emulsionante que confere viscosidade ao produto, era utilizado em concentrações de até 30% pela indústria e foi apontado como a possível causa do problema.
Cogitou-se ainda que a eventual utilização indevida/clandestina de conservantes como a metilisotiazolinona – não permitida em produtos sem enxague (RDC 528/2021) – poderia esclarecer em parte os eventos graves ocorridos.
Para os fabricantes, passa a ser obrigatória a avaliação de segurança cutânea e ocular; e a declaração ou avaliação que ateste a segurança do produto.
Foi estabelecido ainda o aprimoramento da comunicação do fabricante com o consumidor ou profissional a fim de garantir a utilização correta do produto: o modo de uso deve ser detalhado, incluindo a quantidade ideal de produto a ser aplicada.
Apesar do fim da interdição cautelar, a fabricação e comercialização de produtos não registrados ou fora da lista de pomadas autorizadas ainda são proibidas, a menos que sejam feitas as adequações necessárias, conforme estabelecido na RDC.
A RDC 814/2023 busca equilibrar a segurança dos consumidores com o retorno controlado desses produtos ao mercado.
. Por: Claudia de Lucca Mano, advogada, consultora empresarial, especialista na área de vigilância sanitária e assuntos regulatórios, fundadora da banca DLM e responsável pelo jurídico da associação Farmacann.