Em um cenário em que a confiança do cidadão na atuação do governo está constantemente em xeque, o retorno do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) é uma medida que merece atenção crítica e preocupação. Sob a justificativa de aumentar a arrecadação em 2024, o governo parece enxergar o Carf como uma máquina “mágica” de gerar dinheiro. No entanto, essa visão simplista esconde uma realidade mais complexa e preocupante.
Para piorar esse cenário, o Valor Econômico teve acesso a documentos, que foram confirmados pelo Carf, em que o órgão pretende fazer sessões extras em 2024. Segundo a reportagem de 18 de outubro, a previsão é aumentar em 50% a sua carga de trabalho.
De acordo com o jornal, a arrecadação normal prevista seria de R$ 36,5 bilhões, mas com a possibilidade de sessões extraordinárias, a proposta apresentada pelo Carf seria de recolher R$ 54,7 bilhões com o retorno do voto de qualidade, o que é, no mínimo, questionável.
A arrecadação não deve ser vista como uma meta a ser atingida a qualquer custo, principalmente quando isso recai sobre os contribuintes. Na prática, o dinheiro virá daqueles que são punidos por decisões tomadas pelo Carf, um órgão que não deveria ser arrecadatório, mas de julgamento técnico tributário.
No Orçamento de 2024, considerando as novas sessões do Carf, o que se espera em relação à arrecadação é crucial para entender a abordagem do governo. No entanto, essa expectativa deve ser avaliada com cautela, já que a qualidade das decisões tomadas nas sessões extras e a possibilidade de recursos judiciais por parte dos contribuintes podem impactar significativamente o resultado.
O governo parece ignorar o fato de que muitos contribuintes se valerão de créditos de prejuízo fiscal para liquidar os débitos decididos pelo voto de desempate. A ideia de que os contribuintes aceitarão passivamente essa situação é ingênua, pois é mais provável que busquem a justiça para contestar as decisões. Afinal, o Carf ainda é uma instância administrativa, e os contribuintes têm o direito de recorrer às instâncias judiciais superiores quando sentem que seus direitos estão sendo violados.
Além disso, devemos lembrar que os conselheiros do Carf são empregados públicos e, como tal, têm o direito de entrar em greve, ainda mais considerando que terão de trabalhar 50% a mais. Essa possibilidade de paralisação coloca em risco a celeridade e a eficiência do órgão, o que não contribui para a tão esperada arrecadação.
Antes da reintrodução do voto de qualidade, houve um incremento da atividade econômica no país, em parte porque o regime anterior assegurava tranquilidade aos investidores. Eles tinham a garantia de que no Carf haveria um julgamento técnico e imparcial, sem a prevalência do entendimento fiscal. O Brasil, com sua complexa legislação tributária, já enfrenta desafios econômicos significativos. Não garantir administrativamente um julgamento imparcial no Carf só contribuirá para minar a confiança dos investidores.
Portanto, é crucial que o governo reveja sua abordagem em relação ao órgão. Em vez de enxergá-lo como uma máquina de arrecadar dinheiro, deve reconhecer sua função primordial de garantir a justiça e a equidade nas disputas tributárias. É hora de abandonar a visão simplista de que o recolhimento de tributos a qualquer custo é a solução e adotar uma abordagem mais equilibrada e justa, que considere os direitos e interesses legítimos dos contribuintes. A busca por arrecadação não deve ser feita às custas dos contribuintes, mas de forma justa e equilibrada, respeitando os princípios da administração pública e a confiança dos cidadãos.
. O conteúdo dos artigos assinados não representa necessariamente a opinião do Mackenzie.
. Por: Murillo Torelli, professor de Contabilidade Financeira e Tributária no Centro de Ciências Sociais e Aplicadas (CCSA) da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). Universidade Presbiteriana Mackenzie— A Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) está na 91ª posição entre as melhores instituições de ensino da América do Sul, segundo ranking QS Latin America & The Caribbean Ranking – edição 2024. Comemorando mais de 70 anos, a UPM possui três campi no estado de São Paulo, em Higienópolis, Alphaville e Campinas. Os cursos oferecidos pelo Mackenzie contemplam Graduação, Pós-Graduação, Mestrado e Doutorado, Extensão, EaD, Cursos In Company e Centro de Línguas Estrangeiras.