O presidente da Academia Brasileira de Letras declarou recentemente que não é hora de alterar a língua portuguesa para incluir a linguagem neutra. Essa notícia rapidamente repercutiu, e houve quem comemorasse o pronunciamento como uma vitória do “certo” sobre o “errado”.
Já eu fiquei matutando sobre o assunto. Toda vez que ouço alguém falar, compreendo e concluo que essa pessoa está utilizando uma língua semelhante à minha. Da mesma forma, quando ouço vários termos e expressões, sejam gírias ou palavras perdidas do dicionário, que não entendo, reconheço que também faz parte da minha língua. Sei que o acadêmico quis se referir ao que chamamos de padrão oficial da língua, aquele conjunto de regras que dão uniformidade a textos que precisam do máximo de clareza e precisão. Ou o que os mais vetustos chamam de norma culta. Faz sentido, principalmente porque ele teve o cuidado de não condenar nada, mas apenas de sugerir prudência com o tema.
Uma das razões que o presidente da ABL usou para afastar a hipótese de alterar, neste momento, a norma oficial para incluir a linguagem neutra, é que existem linguagens específicas em áreas como Medicina, Direito e Ciências Naturais, com termos técnicos e jargões próprios. Sabemos que nada é mais chato do que um advogado falando “advoguês” com quem não é advogado, ou um médico explicando a doença em termos técnicos para quem só quer saber como se livrar da dor. Mas, tudo bem, parece que aqui não há, digamos, um clamor popular de contestação. No entanto, a questão, se levarmos em consideração o argumento do acadêmico, é bem parecida.
Quando falamos para um público amplo e diverso, como faço todos os dias, por exemplo, é preciso escolher as palavras mais amigáveis. Quando isso não é possível, procurar explicá-las para que se tornem um presente para quem ouve, mas um presente que se possa usar. Da mesma forma, dirigir-se a um público amplo implica também saber que todos são indivíduos que, por acaso, estão reunidos e possuem particularidades que precisam ser vistas, compreendidas e respeitadas. Quando há homens e mulheres, quando há homens, mulheres e crianças, quando há jovens e idosos, quando há brancos, pretos e indígenas, quando há pessoas saudáveis e pessoas doentes, quando há pessoas católicas e pessoas judias, sempre, para quem fala, é um desafio de adequação para não ferir a individualidade de ninguém ou a sua condição naquele momento. Isso não é nenhuma novidade, como também não é novidade que a norma padrão nem sempre dá conta desse cuidado e que, por isso, vamos fazendo uns puxadinhos com a língua para poder agradar e não ofender quem não queremos ofender. Trata-se basicamente de se preocupar com o bem-estar do outro.
Penso que se eu tivesse que escolher entre o cuidado com alguém que está à minha frente e o cuidado com o uso correto da norma padrão da Língua Portuguesa, eu não hesitaria. Lembro-me aqui da história da mulher judia pobre que levou uma galinha para o rabino dizer se era apropriada ou não para o consumo. A mulher do rabino a atendeu e levou a galinha para o rabino analisar. Ele olhou a galinha e olhou para a Torá, olhou para a Torá e olhou para a galinha e, depois de algum tempo, disse:”Essa galinha não é kosher.”
A mulher do rabino voltou para a sala para dar a notícia para a pobre mulher, que torcia as mãos nervosamente. Ela olhou para a mulher e olhou para a galinha; olhou para a galinha e olhou para a mulher até que lhe disse: pode levar e servir sua família. O rabino disse que ela é boa para o consumo.
Pois é. Creio que se o mundo fosse menos Descartes e mais Levinas, questões como essa seriam facilmente resolvidas.
. Por: Daniel Medeiros, doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo. | @profdanielmedeiros