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04/10/2023

A descriminalização do aborto e a voz ativa da mulher

O Supremo Tribunal Federal (STF) retomou nos últimos dias uma discussão que desperta polêmica nas áreas jurídica, médica, religiosa, política e legislativa: a descriminalização do aborto. A ministra Rosa Weber, que decidiu pautar o tema antes de sua aposentadoria, votou pela descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. O seu voto foi o único contabilizado no julgamento, iniciado na madrugada do último dia 22 de setembro pelo Plenário Virtual da Corte Superior. Entretanto, o julgamento foi suspenso em seguida por um pedido de destaque do ministro Roberto Barroso.

O voto da ministra Rosa foi simbólico. A magistrada destacou a posição da autodeterminação da mulher e ressaltou que a questão do aborto é um problema de saúde pública, sendo inclusive uma das quatro causas diretas de mortalidade materna. Para a ministra, a ilegalidade do procedimento provoca insegurança à mulher. Cobrou, em seu voto, a necessidade de políticas públicas que ajudem a evitar gravidez indesejada. “Olhar para as consequências do problema e resolvê-lo com base em uma única lógica, a da continuidade forçada da gestação, em nome da tutela absoluta de único bem –nascituro– em um conflito policêntrico, não é o caminho”.

O caso discutido no STF julga uma ação proposta pelo PSOL, que alega que a criminalização do aborto até a 12ª semana de gestação viola direitos fundamentais das mulheres à vida, à liberdade e à integridade física. Pela legislação atual, a interrupção da gravidez é considerada crime para a mulher que o comete, com pena de um a três anos. Quem faz o aborto em uma gestante, com ou sem o seu consentimento, também incorre em crime, com pena de três a dez anos. O aborto só é permitido em casos de gravidez derivada de estupro, gestação em que não há outro meio de salvar a vida da mulher ou se o feto for anencéfalo.

A controvérsia quanto ao aborto reside no fato de que o direito à vida, assim como o direito à vida privada e à dignidade, não são absolutos. Para alguns, o Direito Constitucional (e natural) à vida do feto precisa ser respeitado. Para outra corrente, a mulher faz jus ao direito à dignidade humana, ao direito de escolha.

Vale ressaltar que, em 2013, as mulheres passaram a ter a garantia de que o atendimento seria “imediato e obrigatório” para questões de aborto em todos os hospitais do SUS, com a aprovação da lei 12.845. Essa norma assegura atendimento médico a mulheres vítimas de violência sexual. A lei remete a uma profilaxia da gravidez – o que sequer corresponderia a um aborto tecnicamente, se for considerado o fenômeno da nidação como o início de uma vida.

No que diz respeito ao Ministério da Saúde, ele atua na regulamentação e orientação das práticas médicas relacionadas ao aborto lícito no âmbito do SUS. O Ministério estabelece diretrizes para o atendimento, garantindo que as gestantes que se enquadram nas situações previstas por lei tenham acesso a um atendimento seguro e adequado. No entanto, em 2020, assistiu-se a um retrocesso por parte do próprio Ministério, o qual havia criado uma portaria que orientava as instituições de saúde a avisarem autoridade públicas sobre o estupro, o que sequer está previsto em lei.

Pela sensibilidade do tema, considerando já haver a permissão legal para alguns casos, faz-se necessário treinar profissionais de saúde, disponibilizar de informações para as gestantes sobre seus direitos e opções, bem como supervisionar a qualidade dos serviços prestados. É importante observar que o atendimento é garantido de forma sigilosa, respeitando a privacidade e a vontade da gestante.

Há pouco tempo um podcast trouxe holofote também sobre o assunto. Foi realizada uma operação em uma Clínica Médica, em 2007, e apreendidos 9.896 prontuários médicos. As fichas tinham registros minuciosos dos atendimentos feitos na clínica durante quase duas décadas. Ainda que se tratasse, em sua totalidade, de casos de aborto clandestino, a exposição de nomes de mulheres que cometeram aborto em uma clínica no Mato Grosso, tornou-se icônico pela gravidade da repercussão que os processos contra as mulheres representaram na vida de muitas delas.

Ainda que os números não sejam precisos, a Pesquisa Nacional de Aborto de 2021 mostrou que uma em cada sete mulheres com até 40 anos abortou ao menos uma gestação. O levantamento coordenado pela antropóloga Débora Diniz ouviu 2.000 mulheres em 125 municípios. Essas mulheres, em sua maioria, acessam a interrupção da gravidez no mercado clandestino. Ou seja, é essencial provocar a reflexão na sociedade. Pessoas com dinheiro pagam por um aborto com segurança; quem não tem, pode até morrer ou ter lesões permanentes.

Apesar de a matéria já ser discutida de forma exaustiva no Congresso Nacional, pouco se avançou para descriminalização total do aborto. Assim, o tema continua sendo pauta nos tribunais e, surpreendentemente, nos deparamos com o sistema de saúde pública, o judiciário e o legislativo despreparados para a discussão.

Na América Latina, alguns países já descriminalizaram o aborto, por exemplo, Uruguai , até 12 semanas de gestação e até 14 semanas em casos de estupro. A Argentina, em 2020, legalizou o aborto até a 14ª semana de gestação, tornando-se o primeiro grande país latino-americano a fazê-lo.

O ideal seria que os Três Poderes enfrentassem o aborto em conjunto com os profissionais da saúde e a sociedade organizada. É necessário que sejam reduzidos os casos de mortes e de lesões físicas e morais resultantes do aborto desassistido e clandestino. A promoção da educação sexual abrangente, do acesso à contracepção eficaz e do atendimento médico seguro em casos de aborto legal são fatores que podem contribuir para a redução da mortalidade materna e, em alguns casos, para a redução dos abortos inseguros.

Ainda virão os votos dos demais ministros no retorno deste tema para a pauta da Corte Superior, mas importante destacar que já existe um caminho para a descriminalização e também para o respeito da voz ativa da mulher.

. Por: Sandra Franco, consultora jurídica especializada em Direito Médico e da Saúde, doutoranda em Saúde Pública, MBA-FGV em Gestão de Serviços em Saúde, diretora jurídica da Abcis, consultora jurídica da ABORLCCF, especialista em Telemedicina e Proteção de Dados, fundadora e ex-presidente da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB de São José dos Campos (SP) entre 2013 e 2018.