E a necessidade de interpretação razoável e econômica.
Em julho de 2021 foi promulgada a Lei n. 14.181, que alterou o Código de Defesa do Consumidor, acrescentando disposições sobre a prevenção e tratamento do superendividamento da pessoa física.
Trata-se de um tema de grande importância para o Poder Público, considerando que em janeiro de 2023, de acordo com a Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e o Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil), cerca de 65 milhões de brasileiros estavam inadimplentes.
De acordo com o texto legal, o superendividamento é caracterizado pela “impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial”.
Como forma de prevenir tal superendividamento, a Lei atribui ao fornecedor, na disponibilização de crédito e venda a prazo, a obrigação de informar ao consumidor dados como o custo efetivo total e a descrição dos elementos que o compõem, a taxa efetiva mensal de juros, o montante das prestações, entre outros.
A intenção do legislador é de garantir que o consumidor tenha todas as informações necessárias para realizar de forma eficiente o seu planejamento financeiro, buscando evitar o superendividamento.
Ainda, a Lei obriga o fornecedor de crédito a “avaliar, de forma responsável, as condições de crédito do consumidor, mediante análise das informações disponíveis em bancos de dados de proteção ao crédito”.
Esta análise, que sempre foi feita pelos fornecedores, considerando seu próprio interesse em reaver o crédito concedido, se limita à identificação da inadimplência do consumidor devidamente apontada nos órgãos de restrição ao crédito e não dos compromissos assumidos naquele momento.
Contudo, o que vemos repetidamente na jurisprudência e na atuação de órgãos como o Ministério Público, é a atribuição de ônus diverso ao fornecedor: o de identificar a capacidade financeira do consumidor no momento da contratação.
Esse ônus esbarra em outra iniciativa do Poder Público para sanar o superendividamento: o Programa Desenrola Brasil, que tem por objetivo a renegociação de dívidas em geral, mas determina, como primeira etapa, a desnegativação automática de dívidas bancárias de até R$ 100,00.
Portanto, nem mesmo a consulta a órgãos de restrição ao crédito garantirão ao fornecedor que aquele consumidor é um bom pagador, o que pode gerar insegurança jurídica ao fornecedor no momento da concessão do crédito.
Se considerarmos o consumidor médio e as grandes empresas fornecedoras de produtos, serviços e crédito, estamos sim diante de casos de hipossuficiência. Contudo, tal hipossuficiência, por si só, não é suficiente para ensejar a restrição da autonomia do consumidor, bem como transferir o ônus não apenas da análise, mas do próprio planejamento financeiro do consumidor ao fornecedor.
Assim, ao mesmo tempo em que tenta garantir ao consumidor o mínimo existencial, a Lei do Superendividamento repassa ao fornecedor um risco enorme e desproporcional, com potencial impacto financeiro capaz de levar muitas empresas à insolvência.
Trata-se de um ciclo vicioso: buscando proteger o consumidor, o Poder Judiciário gera impacto substancial nas empresas, que, diante da inadimplência, podem ser obrigadas a reduzir seus quadros de funcionários, aumentando o desemprego e o poder aquisitivo das famílias.
A Lei determinou que as dívidas que compõem o superendividamento “englobam quaisquer compromissos financeiros assumidos decorrentes de relação de consumo, inclusive operações de crédito, compras a prazo e serviços de prestação continuada”.
Ou seja, a criação desta forma do superendividamento gera um ônus excessivo ao fornecedor, que terá, a cada “venda a prazo”, a obrigação de realizar toda uma análise financeira de cada consumidor, para verificar sua solvibilidade como um todo.
E aqui há vários problemas.
Isto, pois, ao se analisar as dívidas (vendas a prazo) contraídas pelo consumidor, poderá haver vários gargalos de informação que prejudicarão exclusivamente o fornecedor, como, por exemplo, eventual decisão judicial determinando a retirada da publicidade de uma inserção nos órgãos de proteção de crédito e até a desnegativação automática promovida pelo programa Desenrola Brasil. Neste caso, o fornecedor estaria impedido de verificar a insolvência, prejudicando a análise que lhe foi atribuída pela Lei.
E evidentemente, diante de sérias consequências caso a análise da solvibilidade do consumidor não seja perfeita, há grande probabilidade de que os fornecedores endureçam a liberação de crédito/venda, o que acaba, ao final, prejudicando o próprio consumidor.
Além disso, ao atribuir ao fornecedor o ônus de gerenciar os recursos financeiros do consumidor, a jurisprudência vai de encontro ao posicionamento do Supremo Tribunal Federal.
Recentemente, ao julgar a possibilidade de concessão de empréstimos consignados aos beneficiários de programas sociais (ADIn nº. 7.223), o Ministro Nunes Marques defendeu que “a alegada posição de vulnerabilidade do público-alvo não retira sua capacidade de iniciativa e de planejamento próprio.”
O posicionamento em questão é contrário à premissa essencial que vem sendo utilizada pela jurisprudência na aplicação da Lei do Superendividamento e atribui ao consumidor, ainda que em posição de vulnerabilidade, o ônus de realizar o seu próprio planejamento financeiro.
Como vemos, o superendividamento é um problema social e de educação financeira estatal. As inclusões no Código de Defesa do Consumidor tentam solucionar a sua “consequência” e não a “causa”, atribuindo exclusivamente ao fornecedor um ônus excessivo e muitas vezes impossível de cumprir, bem como retira, em grande parte, a autonomia do consumidor.
Entendemos que a Lei do Superendividamento traz disposições necessárias à manutenção do mínimo existencial de boa parte da população brasileira, em especial aquela impactada pela pandemia do COVID-19, com instrumentos que buscam equalizar as dívidas dos consumidores.
Contudo, superado o momento crítico, é imprescindível e urgente a análise da questão de forma mais ampla, inclusive sob o aspecto econômico do direito, e considerando a repercussão das decisões judiciais nas empresas que cumprem estritamente o que determina o Código de Defesa do Consumidor.
. Por: Felipe Ramalho e Marina Farias, sócios da área Cível do FAS Advogados e especialistas em Direito do Consumidor.