O conselho de ética do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), arquivou na última semana o processo que estava em andamento para avaliar se uma campanha lançada em julho com o uso de inteligência artificial, que retratava a cantora Elis Regina, feria de alguma forma o Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária.
A propaganda em questão utilizou uma técnica conhecida como deepfake, tecnologia que utiliza inteligência artificial para incluir de forma realista o rosto, a voz ou outras características de pessoas em cenas e contextos dos quais a pessoa nunca participou. No comercial citado, a cantora, falecida em 1982, aparecia dirigindo um carro ao lado do veículo da filha, a também cantora Maria Rita, como se aquele momento fosse captado no presente. Para compreender melhor os questionamentos que publicidades como essa podem gerar, é preciso primeiro ter em mente que, uma vez que a pessoa faleça, os direitos de imagem dela passam para os herdeiros que, por sua vez, poderão dispor destes direitos.
Ou seja, cabe aos herdeiros a administração da imagem e dos materiais deixados em vida pela pessoa. Essa foi, inclusive, a justificativa do Conar para o arquivamento da ação, afinal o anúncio foi feito mediante consentimento da família da cantora. Porém, como qualquer direito em nosso ordenamento, o direito de imagem transmitido aos herdeiros não é irrestrito. Quando houver abuso ou excesso no exercício deste direito, os herdeiros podem ser responsabilizados por eventuais danos causados a terceiros. Da mesma forma, a depender do caso concreto, é possível que esse exercício individual do direito seja limitado em prol de outros interesses sociais ou coletivos preponderantes.
No caso da propaganda em questão, o Conar também observou esses pontos e julgou que a imagem de Elis apareceu de forma não danosa, “fazendo algo que a cantora fazia em vida” (cantando), sendo que, segundo o órgão, o uso da ferramenta tecnológica seria evidente.
A decisão a nosso ver foi acertada e acende um alerta para diversos pontos a serem considerados para futuras publicidades que utilizem o mesmo mecanismo de deepfake.
Para além de ferir somente a imagem e a reputação da pessoa falecida, o que já seria danoso e se enquadraria fora dos limites que comentamos acima, se no uso dessa imagem, houver dano causado a algum consumidor, quem responderia por isso? A marca, os herdeiros ou ambos? O consumidor poderia pleitear danos por esse uso abusivo de imagem? E em casos de publicidade lesiva a algum bem social ou coletivo, quem responderia pelos danos e quem teria legitimidade para pleitear isso?
Há dois recentes Projetos de Lei em trâmite na Câmara dos Deputados (PL 3608/2023) e no Senado Federal (PL 2338/2023), propondo a regulamentação do uso de deepfake pós-morte prevendo, dentre outros pontos, a necessidade de informação prévia quanto a quaisquer interações humanas com sistemas de inteligência artificial e a exigência de que se coloque uma identificação no comercial de que há inteligência artificial naquela publicidade, para que a pessoa que assiste não se sinta enganada.
Mas, será que os PLs são necessários ou as normas atuais e a atuação dos órgãos fiscalizatórios (como o Conar) já não são suficientes para regular o uso da deepfake em comerciais e propagandas? Seria o caso, talvez, da criação de um órgão fiscalizatório específico para tratar do uso da inteligência artificial?
Essa problemática deve se tornar ainda mais complexa em um futuro próximo, se levarmos em conta que estamos em uma nova realidade, de um mundo cada vez mais conectado. A Inteligência Artificial, seja ela de texto, como o ChatGPT, ou, de imagens, como o deepfake, já é uma realidade e, em breve, processos como esse do comercial com a Elis Regina serão cada vez mais frequentes.
A tecnologia hoje permeia os mais variados aspectos de nossa vida e avança em velocidade exponencial que as leis escritas não conseguem acompanhar, o que exige a atuação fundamental dos operadores do Direito no enfrentamento de questões até então desconhecidas, o que, muitas vezes, pode se dar a partir da aplicação dos princípios constitucionais e normativos já existentes, sem a necessidade de criar uma nova lei a cada nova situação.
. Por: Ulisses Simões Maria Carolina Chiacherini, sócio e advogada na área de Solução de Disputas no L.O. Baptista.