Recriada por inteligência artificial; quais são as implicações jurídicas?
Recentemente a Volkswagen realizou uma campanha publicitária para comemorar os seus 70 anos, utilizando a imagem da cantora Elis Regina, falecida em 1982, a qual foi recriada através da inteligência artificial (IA) para “dar vida” à cantora.
No vídeo, a cantora aparece em um dueto com a filha Maria Rita a fim de ilustrar o relançamento da Kombi, onde as duas cantam a música escrita por Belchior “Como Nossos Pais”.
Vídeo da propaganda — A IA tem sido cada vez mais utilizada mundo afora, ocorre que, quando não bem utilizada, pode colidir com o direito de imagem e consentimento das pessoas.
Dessa forma, importante esclarecer quais são os direitos inerentes às pessoas após a sua morte. De acordo com o artigo 11 do Código Civil (CC), os direitos da personalidade são irrenunciáveis e intransmissíveis, não podendo haver qualquer limitação voluntária pela própria pessoa, sendo que, apenas em casos excepcionais, podem ser transmitidos.
A lesão aos direitos da personalidade implica perdas e danos, nos termos do artigo 12, do CC: “Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.”
Legislação brasileira — Explicado estes preceitos legais, o parágrafo único do mesmo artigo é responsável por regulamentar que os direitos do “de cujus” são transferidos aos seus sucessores, os quais passam a deter legitimidade para pleitear indenização caso haja algum dano à sua personalidade.[1]
Portanto, apesar de não haver direito da personalidade do morto, pois esta se encerra com a sua morte (artigo 6º do CC), existe a “tutela jurídica dos direitos da personalidade da pessoa morta”, que corresponde à tutela de titularidade dos seus sucessores, os quais poderão propor uma ação de danos morais em virtude da utilização da imagem do “de cujus”.[2]
Direito de imagem — Em relação ao direito de imagem, o artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal (CF), o reconhece como sendo um direito da personalidade, ratificando a possibilidade de indenização em caso de violação, senão vejamos:
“Art. 5º, X.
(…) são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação(…)”
Por outro lado, a CF e a Lei de Direito Autoral (LDA) são responsáveis por proteger obras realizadas por artistas falecidos ao prever que “aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar” (art. 5º, XXVII da CF/88) e que “os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subsequente ao de seu falecimento, obedecida a ordem sucessória da lei civil” (art. 41, LDA).[3]
No caso em tela, porém, estamos diante da utilização da imagem da cantora e não de obra produzida por ela, sendo que a empresa se utilizou da IA para “dar vida” à Elis Regina e, por meio de nota ao portal G1, esclareceu que houve acordo entre a família da cantora, isto é, o uso de sua imagem foi autorizado.[4]
Cumpre esclarecer que, para pessoas vivas, existe entendimento consolidado do STJ que veda a publicação de imagem de pessoas para fins econômicos ou comerciais, sem devida autorização, sendo que a indenização independe de prova da existência de um prejuízo, basta que a imagem seja utilizada para os fins citados (SÚMULA 403, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 28/10/2009, DJe 24/11/2009).
Omissão da legislação — Todavia, há uma grande lacuna na legislação acerca do direito de imagem de pessoas já falecidas, isto é, sua imagem pode ser utilizada sem autorização? Se sim, até quando? A partir de qual momento a imagem de uma pessoa falecida cai em domínio público? A autorização dos sucessores é o suficiente para utilização da imagem do “de cujus”?
Após a “viralização” da campanha publicitária, em 10 de julho de 2023, foi aberta uma representação ética pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), órgão não governamental, em virtude de diversas queixas realizadas por consumidores, que indagam se é ético o uso da IA para “dar vida” a uma pessoa falecida e até que ponto essa tecnologia pode gerar confusão acerca da realidade na cabeça das crianças e dos adolescentes. Via de regra, o julgamento pode acontecer cerca de 45 dias após a abertura da representação.
Assim, a IA tem sido cada vez mais utilizada, podendo até simular imagens de uma pessoa já falecida como se ela estivesse viva, gerando debates em diversas áreas do cotidiano. Porém, a falta de regulamentação pode ferir direitos alheios e ser utilizada de forma indevida, capaz de gerar grandes danos, inclusive para aplicação de golpes através da imagem de pessoas, sejam elas famosas ou não.
Posto isso, é importante que haja discussão acerca das lacunas existentes na legislação brasileira, para proteção tanto do direito de imagem dos “de cujus”, quanto da IA, com o objetivo de adaptar-se à nova tecnologia e prevenir possíveis danos e situações que venham a ferir a personalidade destas pessoas.
[1] Art. 12, Parágrafo único, Código Civil: Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau. | [2]ttps://shre.ink/anae | [3] https://shre.ink/anab | [4] https://shre.ink/anar
. Por: Bruna Fante, Advogada integrante do escritório Battaglia & Pedrosa Advogados, formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, com atuação na área de propriedade intelectual, direitos autorais e contratos. | [email protected]